“A culpa era da sua cegueira de
progenitor a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos
filhos, no fim das costas, são tão bons ou tão maus como os demais. ” (Pág.
13).
Novamente – não demorou muito – me
aventurei ler um Saramago, acredito que se você procura ler livros desse autor,
aconselho começar por essa obra para se familiarizar com a estrutura e estilo.
Não me decepcionou nenhum pouco.
A proposta de Saramago para essa
obra é trazer uma nova versão de certos acontecimentos bíblicos com o
protagonismo do conhecido personagem bíblico Caim. Primeiramente, temos a
Criação do mundo com Adão e Eva sendo contada até o momento do pecado original
acontecer, após este momento toda a trama será cercada por infortúnios. Para quem
desconhece a história e as figuras da trama, Caim foi filho de Adão e Eva que,
movido por sua revolta por ser irmão, Abel, ser o escolhido de Deus acaba o
assassinando e sendo amaldiçoado por Deus.
“Era eu o guarda-costas de meu
irmão, mataste-o, assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela
vida dele se tu não tiveste destruído a minha...” (Pág. 34).
O autor traz para o leitor uma
visão da vida de Caim após este infortúnio. Caim foi amaldiçoado com a
imortalidade e teria que vagar pelo mundo sem poder ser morto, na primeira
cidade que para, conhece Lilith que viria ser sua mais profunda amante a quem
chegará até a ter um filho. Tratar de Lilith, uma personagem um tanto quanto excluída
dos pensamentos religiosos é um tanto quanto polêmica e percebemos que é isso
que o autor quer, trazer uma nova versão dos acontecimentos bíblicos de forma
polêmica, mas também muito reflexiva.
Todavia, Caim não permanece apenas
nos braços de Lilith, se torna um homem errante que vagava pelo mundo e que
começou a presenciar muitos momentos que são citados na bíblia e temos, durante
a narrativa, o seu ponto de vista sobre tudo que estava acontecendo. Caim via a
fúria de Deus sobre os homens e também as ações tenebrosas do homem em nome de
Deus e questiona isso a todo momento. Caim encontra Abraão a ponto de
sacrificar o próprio e único filho, Isaac, para provar sua fé, vê a destruição
da Torre de Babel pelo desagrado de Deus ou a destruição dos povos de Sodoma e
Gomorra que foi reduzido a cinzas pela ira de Deus, tudo muito questionado e
refletido por Caim, que cada vez mais se vê descontente ou revoltado com essas
atitudes perante o mundo.
“A história dos homens é a história
dos seus desentendimentos com Deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o
entendemos a ele...” (Pág.88).
Temos um final surpreendente na
história, no momento do dilúvio e a arca de Noé, um desfecho de tirar o fôlego,
bem ao estilo de José Saramago! Que em nenhum momento nos decepciona com seu
enredo instigante e sua estrutura única. Sou uma pessoa católica e que sempre
ouvi tais histórias, mas desde sempre gostei muito de ler histórias que confrontam
certos dogmas da instituição, isso não me faz me afastar, pelo contrário, me
faz refletir sobre o meu papel nela, algo saudável e construtivo, sempre é
muito bom ouvir todos os lados de um fato.
Um fator muito interessante da história
também é o uso da ironia, chegando ao ponto de ser até cômico, Saramago expõe mesmo
a miséria humana, mas acredito que na verdade, ele expõe o que realmente um
humano é, um ser cheio de erros e que de deixar ser movido pelas palavras dos
outros, sendo estas palavras como por exemplo, as de Deus. No final, vemos que
sempre certas ações humanas não são muito de livre-arbítrio, fica então a
reflexão.
Com carinho, Malu, a Traça dos
Livros.
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